É apaixonante a
estrutura da nossa consciência ou, em outras palavras, esse armário que
armazena tudo o que vivenciamos em diferentes gavetas ou prateleiras. É
fantástico reconhecer a vida por esse prisma. Tudo fica compreensível e essa
compreensão nos abre um fantástico caminho de evolução.
É bom lembrar que o
homem evolui através do desejo e do medo. Não há medo sem um desejo escondido e
não há desejo que não traga consigo um medo. O desejo e o medo estão ligados.
Temos medo do que desejamos e desejamos o que nos faz medo.
E quanto ao medo de
amar? Parece absurdo, com tantos outros medos que temos que enfrentar: medo da
violência, medo da inadimplência, e a não menos temida solidão, que é o que nos
faz buscar relacionamentos. Mas absurdo ou não, o medo de amar se instala entre
as nossas vértebras e a gente sabe por quê.
A princípio bastaria
ter saúde, dinheiro e amor, o que já é um pacote louvável, mas nossos desejos
são ainda mais complexos. Não basta que a gente esteja sem febre: queremos,
além de saúde, ser magérrimos, sarados, irresistíveis. Dinheiro? Não basta termos
para pagar o aluguel, a comida e o cinema: queremos a piscina olímpica e uma
temporada num spa cinco estrelas. E quanto ao amor? Ah, o amor... não basta
termos alguém com quem podemos conversar, dividir uma pizza e fazer sexo de vez
em quando. Isso é pensar pequeno: queremos AMOR, todinho maiúsculo. Queremos
estar visceralmente apaixonados, queremos ser surpreendidos por declarações e
presentes inesperados, queremos jantar a luz de velas de segunda a domingo,
queremos sexo selvagem e diário, queremos ser felizes assim e não de outro
jeito. É o que dá ver tanta televisão. Simplesmente esquecemos de tentar ser
felizes de uma forma mais realista. Ter um parceiro constante pode ou não, ser
sinônimo de felicidade. Você pode ser feliz solteiro, feliz com uns romances
ocasionais, feliz com um parceiro, feliz sem nenhum. Não existe amor minúsculo,
principalmente quando se trata de amor-próprio. Dinheiro é uma benção. Quem
tem, precisa aproveitá-lo, gastá-lo, usufruí-lo. Não perder tempo juntando,
juntando, juntando. Apenas o suficiente para se sentir seguro, mas não
aprisionado.
O amor, tão nobre, tão
denso, tão intenso, acaba. Rasga a gente por dentro, faz um corte profundo que
vai do peito até a virilha, o amor se encerra bruscamente porque, de repente,
uma terceira pessoa surgiu ou simplesmente porque não há mais interesse ou atração,
sei lá, vá saber o que interrompe um sentimento, é mistério indecifrável. Mas o
amor termina, mal-agradecido, inesperadamente, termina, e termina só de um
lado, nunca se encerra em dois corações ao mesmo tempo, desacelera um antes do
outro, e vai um pouco de dor pra cada canto. Dói em quem tomou a iniciativa de
romper, porque romper não é fácil, quebrar rotinas é sempre traumático. Causa
um certo medo mudar a rotina e sair de uma zona de conforto. Além do amor
existe a amizade que permanece e a presença com que se acostuma, romper um amor
não é bobagem, é fato de grande responsabilidade, é uma ferida que se abre no
corpo do outro, no afeto do outro, e em si próprio, ainda que com menos
gravidade.
E ter o amor
rejeitado, nem se fala, é fratura exposta, definhamos em público, encolhemos a
alma, quase desejamos uma violência qualquer vinda da rua para esquecermos
dessa violência vinda do tempo gasto e vivido, esse assalto em que nos roubaram
tudo, o amor e o que vem com ele, confiança e estabilidade. Sem o amor, nada
resta, a crença se desfaz, o romantismo perde o sentido, músicas idiotas nos
fazem chorar dentro do carro.
Olhe para o relógio:
hora de acordar. É importante pensar-se ao extremo, buscar lá dentro o que nos
mobiliza, instiga e conduz, mas sem exigir-se desumanamente. A vida não é um
jogo onde só quem testa seus limites é que leva o prêmio. Passa a dor do amor,
vem a trégua, o coração limpo de novo, os olhos novamente secos, a boca vazia.
Nada de bom está acontecendo, mas também nada de ruim.
Um novo amor? Nem
pensar. Medo, respondemos. Só deseja um amor saudável, quem já viveu uma paixão
dilacerante. Porque a paixão corroía tudo por dentro até tirar o fôlego, mas
até a dor parecia bonita: aquele único instante de felicidade com o Outro
compensava os trezentos outros de infelicidade.
E se a gente tem
pouco, é com este pouco que vai tentar segurar a onda, buscando coisas que
saiam de graça, como um pouco de humor, um pouco de fé e um pouco de
criatividade. Ser feliz de uma forma realista é fazer o possível e aceitar o
improvável. Fazer exercícios sem almejar passarelas, trabalhar sem almejar o
estrelato, amar sem almejar o eterno.
Afinal, que corajosos
somos nós, que apesar de um medo tão justificado, amamos outra vez e todas as
vezes que o amor nos chama, fingindo um pouco de resistência, mas sabendo que
para sempre é impossível recusá-lo.
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