No final de semana passado, nos
dias 03 e 04 de novembro de 2012, pude presenciar e conviver com histórias
ímpares a normalidade de minha vida. Conviver com pessoas que, dia após dia,
tem um grande desafio: aceitar seus limites sem jamais desacreditar na sua capacidade de
superação.
Como chefe de sala, tive que ajeitar a
sala para a realização de uma prova que o governo sancionou para a entrada de
estudantes em instituições de ensino superior
federal. Minha sala, 1D, localizada em uma escola no bairro Ribeirânea, em
Ribeirão Preto/SP, era composta por onze candidatos. Candidatos que fariam a
prova em dois dias. Confiantes de seu conhecimento, seriam testados a fim de
tomarem um posto no futuro promissor que auferiram em vidas passadas, seja por
melhores condições, seja por colocações melhores, seja, apenas, para mudar a
sua realidade. A tal sala era distante das demais, localizada no primeiro piso,
logo após um anfiteatro. Onze lugares apenas entrariam na disputa por vagas em
cursos distintos. Eram especiais, no sentido de apresentarem por direito mais
uma hora, tempo adicional, para realizar a prova. A sala apresentava candidatos
que possuíam dificuldades motoras, neurológicos, psicológicos
e pedagógicos. Às 13
horas, começava a prova.
Casos particulares. Como ser imparcial
com esses casos? A regra falava que não era para manter contato, mas para ser
educado e apresentar polidez. Ímpossível e redundante. Uma vez próximo com
outro ser humano, você já tem um contato, não diria íntimo, mas a convivência
por dois dias bastaria que mantivéssemos uma concordância de amizade e respeito.
De uma forma ou de outra, acabei me envolvendo: decorei e acabei conhecendo
cada nome e cada estória por detrás de uma lista de nomes grandes, estranhos e
criativos. Que incrível!
Uma senhora, com pouco mais de
cinquenta graças alcançadas, já fora, praticamente, advogada, servidora
pública, técnica em enfermagem e, naqueles dias, estava tentando pedagogia. O
que mais ela queria? E a cada caminhada, observava sua expressão de domínio na
hora de realizar a prova. Sorria. Pensava. Marcava. Ela me parou duas vezes,
não foi para perguntar, mas para oferecer. Diante de sua sacola, cheia de
guloseimas e alimentos para saciar sua fome de conhecimento, ela me ofereceu um
pouco. Recusei. Logo após, solicitou para que eu oferecesse a uma “adversária”,
logo ali, dentro da sala, pois, esta não havia almoçado. Isso mexeu comigo,
mexeu meus sentimentos. Deveria quebrar a regra? Ser imparcial? Oferecer ajuda?
Ser racional ao invés de ser movido pela emoção? Se ambas estivessem concorrendo
ao mesmo curso ou a mesma instituição, ambas ganhariam o primeiro lugar. Guerreiras.
Lutam sempre e nunca desistem.
Um conto dizia que os Guerreiros
não se ajudam, não tem compaixão por ninguém. Para ele, ter compaixão significa
que você desejava que o outro fosse como você, e você o ajuda só para isso. A
coisa mais difícil do mundo é um Guerreiro deixar os outros em paz. A
impecabilidade do Guerreiro é deixar os outros como são, e apoiá-los no que
forem. Isso significa, naturalmente, que você confia que, também, eles sejam
Guerreiros impecáveis.
Releguei a regra. Não é de minha
natureza, mas as mesmas emoções que me movem, formam a minha identidade, o meu
eu. Tento trabalhar conjuntamente a mente e o coração, mesmo que um saia ferido
e o outro vitorioso, no final, o resultado é que o mérito não está na ação e
sim no hábito.
A outra levou um susto ao me ver
oferecendo uma sacola de biscoitos. Não pensou duas vezes. Além disso, teve a
audácia de pegar mais de um. Sorri. Imaginava o quanto seria difícil pensar com
fome ou ter fome e fazer força para pensar. Sorri novamente e disse: “querendo
mais é só me falar”. Um “muito obrigado” já foi o suficiente para ganhar meu
dia.
Em caminhadas e voltas dentro da sala,
percebia o esforço e a calma que faziam as resoluções da prova. Ao lado da mesa
do “professor”, estava um menino, com seus 17 anos, suas movimentações eram
lentas, devagar. Sua fala baixa e lenta. Desesperei-me por ele a fim de me
oferecer para fazer as coisas para ele, quem sabe, passar as respostas para o
gabarito. No entanto, me contive. Esperei. Às vezes, ele apontava e, por
súbito, eu interpretava seus pensamentos e desejos e os realizava. Não trouxera
a caneta esferográfica preta solicitada no edital. Peguei e ofereci a minha, a
qual fora emprestada pela coordenadora. Estava sempre atento a qualquer
barulho, a qualquer movimentação. Pediu para encher sua garrafa de água duas
vezes. E surpreendeu a mim e ao fiscal ajudante que me acompanhava. Em seu
tempo, executou toda a prova e não esperou que o tempo fosse mais rápido,
terminou antes da duração acabar.
Tantas similaridades, ao mesmo tempo,
tantas diferenças. Eu estava sempre atento a qualquer barulho, ruído,
movimentação. Perguntaram-me se a redação exigia título, confirmei
dissimuladamente. Sempre pedia para assinarem as tantas folhas “burocráticas”
da confirmação de presença. A prova acabara às 18 horas e 30 minutos, no
domingo. O espaço, antes tomado por ricas estórias de superação, esforço e
sensatez, estava novamente vazio, quieto, desnudo, voltara ser frio e
insensível às adversidades de quem sempre o compõe.
Apesar de ser contra essa ditadura de
realizar prova para testar algo imensurável e inigualável, fui parte do sistema
das “provas maçantes”; ainda, pecamos no sentido de matutar e ensinar padrões
passados e antiquados, sem valor e, às vezes, paradoxal, frente às constantes
inovações e mudanças de paradigmas em um mundo “globalizado”.
Contudo, dessa vez, não pensei no
complexo. Só pensava como tudo voltaria ao que era antes. Normalidade? Sem
mais preocupações por causa de uma prova, mas, novas ou as mesmas preocupações
diante da vida. A vida de cada uma daquelas pessoas mudaria, ontem, hoje, ou
amanhã. Não importa o período do tempo. Importa que elas tentaram e fizeram
algo para mudar. Talvez, (re)começaram uma nova jornada. O fato não está no
resultado que alcançarão, porém, sim, na atitude de darem um primeiro passo.
Simplesmente, tentar. Tentaram. É isso que me move, lhe(s) move(m), move o
mundo. A superação é sentida pela força interior. As perguntas movem sonhos, os
sonhos movem caminhos.
Só que há duas maneiras de viver
a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é
vivê-la como se tudo fosse milagre.
“Todos os dias eu
morro. E junto comigo morrem também os meus esforços, minhas tentativas, meus
fracassos e até as minhas vitórias. Felicidade é saber que em cada amanhecer eu
torno a viver, e sempre posso ser melhor do que eu fui antes.”
(Augusto dos Anjos)
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