terça-feira, 6 de novembro de 2012

Onde devaneios não têm vez...


No final de semana passado, nos dias 03 e 04 de novembro de 2012, pude presenciar e conviver com histórias ímpares a normalidade de minha vida. Conviver com pessoas que, dia após dia, tem um grande desafio: aceitar seus limites sem jamais desacreditar na sua capacidade de superação.

Como chefe de sala, tive que ajeitar a sala para a realização de uma prova que o governo sancionou para a entrada de estudantes em instituições de ensino superior  federal. Minha sala, 1D, localizada em uma escola no bairro Ribeirânea, em Ribeirão Preto/SP, era composta por onze candidatos. Candidatos que fariam a prova em dois dias. Confiantes de seu conhecimento, seriam testados a fim de tomarem um posto no futuro promissor que auferiram em vidas passadas, seja por melhores condições, seja por colocações melhores, seja, apenas, para mudar a sua realidade. A tal sala era distante das demais, localizada no primeiro piso, logo após um anfiteatro. Onze lugares apenas entrariam na disputa por vagas em cursos distintos. Eram especiais, no sentido de apresentarem por direito mais uma hora, tempo adicional, para realizar a prova. A sala apresentava candidatos que possuíam dificuldades motoras, neurológicos, psicológicos e pedagógicos. Às 13 horas, começava a prova.

Casos particulares. Como ser imparcial com esses casos? A regra falava que não era para manter contato, mas para ser educado e apresentar polidez. Ímpossível e redundante. Uma vez próximo com outro ser humano, você já tem um contato, não diria íntimo, mas a convivência por dois dias bastaria que mantivéssemos uma concordância de amizade e respeito. De uma forma ou de outra, acabei me envolvendo: decorei e acabei conhecendo cada nome e cada estória por detrás de uma lista de nomes grandes, estranhos e criativos. Que incrível!

Uma senhora, com pouco mais de cinquenta graças alcançadas, já fora, praticamente, advogada, servidora pública, técnica em enfermagem e, naqueles dias, estava tentando pedagogia. O que mais ela queria? E a cada caminhada, observava sua expressão de domínio na hora de realizar a prova. Sorria. Pensava. Marcava. Ela me parou duas vezes, não foi para perguntar, mas para oferecer. Diante de sua sacola, cheia de guloseimas e alimentos para saciar sua fome de conhecimento, ela me ofereceu um pouco. Recusei. Logo após, solicitou para que eu oferecesse a uma “adversária”, logo ali, dentro da sala, pois, esta não havia almoçado. Isso mexeu comigo, mexeu meus sentimentos. Deveria quebrar a regra? Ser imparcial? Oferecer ajuda? Ser racional ao invés de ser movido pela emoção? Se ambas estivessem concorrendo ao mesmo curso ou a mesma instituição, ambas ganhariam o primeiro lugar. Guerreiras. Lutam sempre e nunca desistem.



Um conto dizia que os Guerreiros não se ajudam, não tem compaixão por ninguém. Para ele, ter compaixão significa que você desejava que o outro fosse como você, e você o ajuda só para isso. A coisa mais difícil do mundo é um Guerreiro deixar os outros em paz. A impecabilidade do Guerreiro é deixar os outros como são, e apoiá-los no que forem. Isso significa, naturalmente, que você confia que, também, eles sejam Guerreiros impecáveis.

 
 
Releguei a regra. Não é de minha natureza, mas as mesmas emoções que me movem, formam a minha identidade, o meu eu. Tento trabalhar conjuntamente a mente e o coração, mesmo que um saia ferido e o outro vitorioso, no final, o resultado é que o mérito não está na ação e sim no hábito.

A outra levou um susto ao me ver oferecendo uma sacola de biscoitos. Não pensou duas vezes. Além disso, teve a audácia de pegar mais de um. Sorri. Imaginava o quanto seria difícil pensar com fome ou ter fome e fazer força para pensar. Sorri novamente e disse: “querendo mais é só me falar”. Um “muito obrigado” já foi o suficiente para ganhar meu dia.

Em caminhadas e voltas dentro da sala, percebia o esforço e a calma que faziam as resoluções da prova. Ao lado da mesa do “professor”, estava um menino, com seus 17 anos, suas movimentações eram lentas, devagar. Sua fala baixa e lenta. Desesperei-me por ele a fim de me oferecer para fazer as coisas para ele, quem sabe, passar as respostas para o gabarito. No entanto, me contive. Esperei. Às vezes, ele apontava e, por súbito, eu interpretava seus pensamentos e desejos e os realizava. Não trouxera a caneta esferográfica preta solicitada no edital. Peguei e ofereci a minha, a qual fora emprestada pela coordenadora. Estava sempre atento a qualquer barulho, a qualquer movimentação. Pediu para encher sua garrafa de água duas vezes. E surpreendeu a mim e ao fiscal ajudante que me acompanhava. Em seu tempo, executou toda a prova e não esperou que o tempo fosse mais rápido, terminou antes da duração acabar.

Tantas similaridades, ao mesmo tempo, tantas diferenças. Eu estava sempre atento a qualquer barulho, ruído, movimentação. Perguntaram-me se a redação exigia título, confirmei dissimuladamente. Sempre pedia para assinarem as tantas folhas “burocráticas” da confirmação de presença. A prova acabara às 18 horas e 30 minutos, no domingo. O espaço, antes tomado por ricas estórias de superação, esforço e sensatez, estava novamente vazio, quieto, desnudo, voltara ser frio e insensível às adversidades de quem sempre o compõe.

Apesar de ser contra essa ditadura de realizar prova para testar algo imensurável e inigualável, fui parte do sistema das “provas maçantes”; ainda, pecamos no sentido de matutar e ensinar padrões passados e antiquados, sem valor e, às vezes, paradoxal, frente às constantes inovações e mudanças de paradigmas em um mundo “globalizado”.
 
 
 

Contudo, dessa vez, não pensei no complexo. Só pensava como tudo voltaria ao que era antes. Normalidade? Sem mais preocupações por causa de uma prova, mas, novas ou as mesmas preocupações diante da vida. A vida de cada uma daquelas pessoas mudaria, ontem, hoje, ou amanhã. Não importa o período do tempo. Importa que elas tentaram e fizeram algo para mudar. Talvez, (re)começaram uma nova jornada. O fato não está no resultado que alcançarão, porém, sim, na atitude de darem um primeiro passo. Simplesmente, tentar. Tentaram. É isso que me move, lhe(s) move(m), move o mundo. A superação é sentida pela força interior. As perguntas movem sonhos, os sonhos movem caminhos.

Só que há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre.

 

 

“Todos os dias eu morro. E junto comigo morrem também os meus esforços, minhas tentativas, meus fracassos e até as minhas vitórias. Felicidade é saber que em cada amanhecer eu torno a viver, e sempre posso ser melhor do que eu fui antes.”

(Augusto dos Anjos)

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